Ser Olaio
Miguel von Hafe Pérez
Nos anos oitenta do século passado tudo parecia mais fácil. A ressaca da revolução de Abril diluíra-se e a abertura europeia facilitava um trânsito de informação mais regular. António Olaio definiu, nesses anos de formação, um território próprio que acabou por marcar grande parte da sua obra. Na verdade, criou uma extensão de si enquanto artista. Tentacular, essa extensão envolve a pintura, a performance, a música, a escrita e a produção videográfica. Tudo num registo de oblíqua competência. O seu desígnio não é o perfeccionismo vocal, a pincelada deslumbrante, a coreografia rebuscada, a música complexa ou as narrativas imagéticas em elipse. Pelo contrário. Nele a simplicidade é combustível. Desviante, sublinhe-se. Quando Patti Smith, adolescente, foi a um museu pela primeira vez e viu um Picasso pensou, com razão, que a liberdade em arte era aquilo. Quando, um pouco mais tarde viu o Jim Morrison num concerto dos Doors, ficou estranhamente atraída e repelida pelo personagem. Mas terá sido esse um dos momentos que a convenceu que também poderia e quereria fazer aquilo. Quais terão sido as epifanias de Olaio? Imagino um de Chirico on acid…ou um qualquer crooner numa lânguida cave a despedaçar corações envelhecidos. Nas pinturas, como na performance, a discursividade poética tende a derreter-se (por vezes literalmente). Escorre em registos sinestésicos de inquietante intensidade. O contorcionismo em palco repercute, frequentemente, a diluição de significados na sua pintura. Em Next to the Next Century, título da exposição e de uma música que agora também se apresenta, Olaio veste o papel de um recolector de memória(s). Pinturas de objetos sagrados, objetos inúteis ou objetos que se tornam por vezes fardos escusados nas nossas vidas, porque irritantemente semi-preciosos, semi-nostálgicos ou semi-significativos. O peso da sua memória corporiza-se na continuidade de desenhos sombra que parecem sugar o brilho e glória do original da representação. Um sopro não de vida, mas sim de esvaziamento elementar. Um fantasmático lastro de um nada insidioso. Na canção, a música é do Vitor Rua. A letra e as imagens são do António Olaio. Numa casa abandonada e arruinada, um longo travelling faz ecoar uma litania sobre a saudade do futuro: um século que já foi, outro que se deseja (mas quem?). O presente é apenas passagem. Nada de heroísmos, cavalgadas wagnerianas ou arrebatamentos punk. Aqui, as palavras deslizam na fissura de um desaparecimento inevitável. O que fica é uma memória do que não foi. Arte, dizem uns. Eu dira antes: ser Olaio.fotos: Rita Castro